sábado, dezembro 19, 2009

lagarta migrante

uma lagarta em migração, nomadizando-se para se enraizar novamente. eis uma ave migrante que carrega o próprio casulo, mas precisa desfazer-se de muitas cascas e de muita bagagem acumulada, pra ocupar novo casulo.
afundar e sair dos buracos negros do cotidiano anos a fio acumulado, pra de lá sair com alma mais leve, limpa, depois de um exercício do desapego, com muito mais resíduo no lixo que nas costas! e um respiro fundo e leve, pra começar a partida e prometendo-se não acumular mais tanto. como resolução de ano novo, que se faz como baliza, e finca-se em alguma pequena porcentagem, mas nunca em grandes montantes. e sabe-se que daqui a mais uns 10 anos haverá mais pilhas de guardados...

sábado, dezembro 12, 2009

bichos de goiaba

por que tanto querem a si mesmos, quando sabem que não existe absoluta autonomia?

por que se deixam depender tanto, quando se sabe que é sempre preciso o impulso de cada um pro giro da roda?

por que as fotos amareladas materializam tão mais a saudade? é amarela a cor do tempo transcorrido?

e o mundo humano nos tira do tato em mais ampla superficie, nos priva mais do olfato, nos encarcera na luz, na visão, por vezes na audição que confundem, que cegam, que ludibriam...
passagem de ida e volta constante, entre alegria e tristeza: um tango.

p.s.: trilha sonora tão vasta...

sexta-feira, dezembro 11, 2009

em sentido

em galhos soltos
que do lastro se esgarçaram
prendo-me a outros braços
de rio revolto
caudalosas margens
numa amplidão de voo fundo
que se deixa conduzir
como deriva


e também oscilo
como fogo-fátuo
esperando
os vagalumes que me guiem
pois a muita luz me abunda
e ofusca o suave olfato
do que pisca leve
quase não soa
e abraça quente
como neve

domingo, dezembro 06, 2009

da arte de ser sombra


monstro, silhueta ou fantasmagoria?
fantasia ou alter ego?
disfarce ou necessidade?
autoecologia, preservação de si e da própria espécie, hibridismo e mimetismo, função de locomoção astral, travestismo e candomblé.
invenção e engenho, arte e magia.

um copo de água bem gelada...

estado de suspensão da matéria

era à vera como queria estar. mas estou numa espécie de. tanta função, que vou no automático, como se tropeçando no cumprimento das tarefas sobrepostas, emendadas, embaralhadas, fundidas...
e sempre lá no fundo um gosto travoso de quando o filtro se retorce e o café vem com a borra do pó, entalando a glote, irritando-a e propondo uma tosse incômoda, particularmente aos portadores da síndrome do refluxo. muito prazer!
paira em mim, por vezes, a sensação de precisar aprender da autopreservação um tanto muito mais que apenas o manual mínimo de sobrevivência... mais corda bamba, mais responsabilidades, mais ônus: êpahei, e vamos nós.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

sobre essa hora em que tudo é saudade

uma noite em que pesadelos seguidos não me deixavam dormir. e era uma noite em que cheguei como quem volta de uma longa guerra, de corpo pesado e pálpebras que não se sustentam, mas o sono não se conciliava com algo que insistia em sobressaltar-me. o organismo pressente o que a mente não delineia em claro verbo...
e de manhã, a notícia é que seria o dia da despedida física tão esperada... quantas vezes imaginei como seria este dia, a força necessária pra ser ombro; a última vez de pôr os olhos e pedir, como oração, a bênção; os trâmites burocráticos e arrastados que cabem a quem fica. ao menos, o consolo quando fiz a pergunta: - foi uma morte linda. dito pela enfermeira que a acompanhava no exato momento. disse-me que foi exatamente o último fundo suspiro e os olhinhos se fecharam. tomou-lhe o pulso já ciente, tinha-se deixado ir, enfim. a velhinha, dona Aderitinha, minha avó a quem encontrei já neta adulta, que me adotou e me dava a bênção e me olhava austera mas cheia de um carinho tão nítido. mistura de alívio, pela partida de quem aqui já apenas sofria e era um passarinho atado ao leito de hospital domiciliar, encolhidinha e com mãos que nem se abriam mais, nem falava mais, para contar suas infindas histórias, me dizendo pra estudar e pedir a dEUS (o dela se escreve de diverso modo), assim mesmo, com transitividade aberta, pedir e agradecer.
e vem à tona a sensação de todas as mais fundas perdas. e começa a nascer mais forte e fundo, dentro de cada um dos que ficam a luz de mais uma força introjetada, mais uma raiz que do mundo externo se finca em alicerce de dentro.
eu tive o imenso privilégio, ao menos, de em vida ter podido ser por ela adotada. e herdaremos papoulas, as que ela tanto amava e defendia a estilingue das lagartixas...
bênção, vó! e que dEUS abençoe tua energia agora espalhada em mil direções e dentro da gente.

quarta-feira, dezembro 02, 2009

na repartição

a mulher era gorda, muito gorda. e tinha um olhar triste. muito triste. era essa a observação explícita no recinto. além dos sons do ar condicionado como motor de caminhão, e das funcionárias que conversavam quase como se gritando de um prédio a outro, embora estivessem as duas frente a frente. e mais de meia hora para a funcionária que supostamente nos atenderia nos chamar para "preencher" algum formulário que justifique o emprego dela e a lógica ilógica da burocracia e seus entraves.
grávidas, muitas grávidas, e alguns meninos cheios de remela e meleca de nariz. como se reproduz esse povo, meu dEUS! e a médica da junta, a simpatia de quem ama o que faz... querendo mostrar o poder, obstacula até onde não pode e, por fim, carimba como quem dá um soco no papel amarelento, que lembra as remelas do pirralho na sala anterior.
a pessoa mais feliz de todo o cenário é um cachorro que coça as pulgas na calçada e diz bom dia, abanando o rabo; assim que saímos à rua.
nem havaianas se usa direito. as pessoas pisam com pés tortos, compram números de chinelo menor que o pé e ficam os calcanhares sujos à mostra. a mania de tirar um pé do chinelo de plástico e apoiar o pé na outra perna. lembro da "prima-mãe" e o cuidado com a higiene e o corte das unhas de mãos e pés. limpeza básica, que poucos exercem...
e no primeiro sinal, após vencido o primeiro mínimo trecho na guerra de carros que não usam a sinaleira e nem se dão conta de respeito às faixas, mais uma grávida, pedinte, e com um pirralho remelento e melequento no colo. eu penso, vai pedir bolsa família a Lula, vai! Vai pedir bolsa coelha, bolsa superpopulação de miseráveis ignorantes; pra gente alimentar a índia em que vivemos, nos julgando país do futuro. e o futuro é um barco furado, viu?

brasil, terra adorada, entre outras mil, és tu a pátria enlameada...

terça-feira, dezembro 01, 2009

de um jeito de olhar


uma percepção que se faz estranha
à primeira vista
põe focos enviesados
e muda as perspectivas

pelas entranhas do círculo
o autoretrato
é obsessão de artista
que na própria mão
gera outra esfera
viva

quinta-feira, novembro 26, 2009

na roda da fortuna


as parcas, que fiam o destino.
eis a imagem do círculo vital, no qual há as inevitáveis subidas e descidas, os giros de posição de conforto, declínio, decadência, infortúnios e realinhamentos cíclicos de subidas, de retomadas, no tênue processo constante do equilíbrio: como num circo.



(a foto é de Alexander Rodchenko)

terça-feira, novembro 24, 2009

sobre barro


arquitetura de ninho, fazendo casa e aconchego.
um inteiro edifício passarinho
do joão engenheiro:
neste eu queria morar...


mas voo mesmo é pro quintal
de grama onde enfiar pés,
como lírios brancos e jasmins.

segunda-feira, novembro 16, 2009

da série: exercícios de levitação (mas e por quê?)


aquela fase das crianças em que tudo deve ter uma explicação. um dos meus sobrinhos teve essa fase de modo profundamente radical, passou uma longa temporada em que a sequência dos porquês não tinha fim. e uma vez cismou que junho vinha depois de julho, e que tinha certeza disso porque tinha visto assim na agenda escolar, e uma agenda escolar é escolar, ora, é pra ensinar, então tinha que estar certa! e não adiantava explicar, dentro do carro em deslocamento, longe da agenda. e ele perguntava: por que num é? é sim! até chegar em casa e ver que era o contrário... aí, sem se dar por vencido, pergunta: mas por que junho é antes? podia ser depois... por quê?


os balões que habitam o juízo dos pequenos infantes são uma porção fundamental de gás hélio para que nossa imaginação, mesmo depois da ação de Crhonos, possa seguir fluindo e flutuando, na alma ícara que nos permite manter sãs as veias e a poesia. crescer atados ao voo desses balões é o que nos faz escapar da fatal crise de imaginação.


meu avô era exímio adorador de balões, de voos e de ares. mais aprendidos com o velho menino.



um pouco non sense...

sábado, novembro 14, 2009

sexta-feira 13

um dia feliz, muito feliz. todo dia 13, se já era data dileta, há uns anos converteu-se em data festiva. de celebração que nem precisa de alarde,que se dá mesmo lá dentro fundo, na partilha íntima.
nem pude deixar aqui o resgistro ontem mesmo, mas o faço hoje.
com o brinde ao número, a sucessão dele sem ponto final...

quinta-feira, novembro 12, 2009

da série: exercícios de levitação


Escrever é um exercício: inegável constatação.

como observar nuvens

e fazer-se

tão intrinsecamente poeta,

que nelas se enxerga

a capacidade de uma vera visão.



brincar feito menino, lúdico ofício, sério como crescer, inevitável como o ampulheto escorrer-se em areia.


em menina, sonhei -ainda ontem- amarrar uma nuvem pelo rabo e pedir a ela que me levasse a passear...

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o amor é um exercício: inegável constatação.


desprendimento de si, embrenhagem na mata do outro; retorno do abraço em si próprio, na oferta -enfim entendida- de oferecer a outra face.



sapo na viola, indo pra festa no céu. dorothy abraçada pelo tornado, visita o mágico de oz... nuvens; desprendimento do chão.

quarta-feira, novembro 11, 2009

saudade é presença no reverso

e eis que hoje é dia de pensar nela...
dedicado o dia a lembrar uma criatura ímpar,
que fez da sua casa acolhimento, de pinceladas, de passos iniciantes, de ícaros em princípio de voo. abrigo de mim mesma, menina. tão engraçado, como nos adorávamos; nos frequentávamos; nos queríamos perto. eu, muito menina, desde sempre, gostava de frequentá-la, e ela, já senhora, de me ouvir. me levava pra almoçar e passar toda a tarde inteira com ela, lendo juntas, regando plantas do jardinzinho tão lindo, naquela casa que cheirava aos jasmineiros que percorriam a lateral de entrada do bequinho em que vivia, encantada em um bosquezinho colorido tão dela. foi uma amiga, uma avózinha reconhecida e escolhida. na casa dela, tantos primeiros eventos: o primeiro porre despressentido do irmãozinho mais novo, os encontros e reencontros com pessoas queridas, as conversas noite adentro, noitadas de criança e de mocinha, na rua do futuro, no número 25. endereço poético, que sempre vai povoar minhas melhores memórias.
querida amiga, tereza dourado: um beijo de saudade.

domingo, novembro 08, 2009

laranja difuso


o céu laranja
na minha preferida hora
doura o quadro
da minha boca na tua

beijo

e amo duas mulheres
que habitam em mim

mas como conciliá-las
para que vivam em harmonia assim?

espelho da lua
na tela vazia
de uma rua que se bifurca em vias

traço o retrato
de o quanto em mim
descaibo

e amo duas mulheres
que habitam em mim

como dividir-me em corpos
e espaços
quando meus líquidos se espalham
e amo cada detalhe de cada uma delas em mim?

sou vasta e nenhum amor me basta?
sou múltipla e a unidade me castra?
sou louca e me bifurco em alas?
rompo-me as asas e voo na teimosia
de amar duas mulheres em mim
como cativas habitantes da minha polifonia

no céu se esvai a cor
que me fez surgir o devaneio
do beijo sem freio
da minha boca na tua
duas mulheres que são uma

o amor é quase sempre
uma viagem afora
para cair-se em si

e do mapa sem bússolas
miro-me no espelho
para perder-me de mim

sexta-feira, novembro 06, 2009

orixás e devoção


igarapé, nome de autobatismo, do orixá de sabedorias muito antigas, com cheiro de mato, de planta medicinal, de chá de cura, mesinha de pajé. igarapé, nome de água, nome de charco, de microcosmo de vida miúda, de habitat de passarinho pequeno, colibri cor de pirilampo, orixá das origens, orixá em sentido bíblico, orixá horizontal que se verte em todas as formas, por sob frondosos cachos de árvores de muita cepa. igarapé, orixá de inundações benfazejas, de amor de raiz funda fincada e sabedoura. orixá de crescimento, devoção, proteção e fecundidade do gozo renovável sempre. igarapé, orixá sem ponto final...

quarta-feira, novembro 04, 2009

nostálgicas imagens de todo dia


...ela sai assim, todo quase dia, pedala sabiamente a favor do vento, que acaricia seus cabelos de cachos, e com olhos atentos, insere-se nos devidos espaços, num voo liberto alcança novos pastos, em que espalha sua ginga de capoeira menina, com girassóis insinuando-se pela fronte, abraçados em um entrelaçado recinto que abre os caminhos, como oferenda aos orixás de proteção, alada ciclista, pensamentos dispersos, pirilampos na imaginação...

terça-feira, novembro 03, 2009

da série: instantâneos


Polaroide:
alumbramentos são

súbitos

seres vagalúmicos


(quando a luz se afasta

a moça na sombra

é meu peito

que desata)

segunda-feira, novembro 02, 2009

da série: instantâneos


picadeiro:



há dias em que me
sinto
tão alegre,
que é como se dEUS
houvera
me parido num circo.
p.s.: imagem Picadeiro com Leões amestrados - Rubem Grilo - 1984

domingo, novembro 01, 2009

papéis amarelados, do fundo do baú de guardados...


Tenho partido-me de avessos. Como, numa mesma fresta de janela, sombra e raio direto: sol. Pensando em quanto me basto, e como grande fica descaber nessa constatação. Depois dela. Na vera, durante, ainda e sempre. Constatações são meteoros de pensamento em forma de inegável azulejo branco: nada contesta. Mas nada é, nem sempre, constatável; por vezes só insinuável. Sina, curva torta: sinuoso. Fazer aposta em risco é ser jogador na própria alma. Sem risco, é só exercício de corpo. Até mais e porque: em mover-se, pode-se permanecer no mesmo lugar; ou advir tombo. Um risco em que se corre é apenas uma linha, fina, reta, que pode esconder pequenas crateras, quando os pesos são mais do que pode o branco do papel. Mas não se aprende equilíbrio no plano, puro. Tem que ser matéria de gravidade.
Isso são aforismos, somente?
Afora o sonoro feito no escrever das palavras, penso esconderem-se sentidos... restam sendo aforismos? Bonita palavra, de erudição. Ficar sábio às vezes é acumular poeiras da língua no miolo do juízo, encravadas. Mas quando é sabideza de mesmo: haja limpidez. É quando tudo fica tão claro; mesmo se torto ao ponto de o pescoço dar giro sobre si mesmo. Claro de o sol assomar-se à sombra, pra que se tenha luz e fresca brisa, no conforto de um parapeito, onde a gente senta despressentido, justo por saber que por ali vai entrar aquele beija-flor, aquele que a gente esperou vir nos buscar toda vida. Aquele que a gente sabe que nasceu no nosso dentro e vamos desengolir na exata hora de mergulhar o fundo nariz no girassol.





(esse texto recebeu por nome: beija-flor de girassol, mas não é título, pois que melhor cabe é só aparecendo no final).

sábado, outubro 31, 2009

nada mais a declarar: reconhecimentos.

"-Que espécie de gente vive por aqui? (perguntou Alice)
-Naquela direção (disse o Gato, apontando com a pata direita) mora um Chapeleiro. E naquela (acrescentou, levantando a outra pata) mora a Lebre de Março. Visite um ou o outro, tanto faz: ambos são loucos.
-Mas eu não quero me encontrar com gente louca. (observou Alice)
-Você não pode evitar isso. (replicou o Gato) Todos nós aqui somos loucos. Eu sou louco. Você é louca.
-Como sabe que eu sou louca? (indagou Alice)
-Deve ser (disse o Gato) ou não teria vindo por aqui." (1980: 82-83)



sexta-feira, outubro 30, 2009

cordisburgo


cidade em que nasceu meu padrinho, terapeuta respiratório, analista e conselheiro, meu cumpade quelemém: o rosa.
ele sábio simples dos pensamentos do coração, transplantados na alma e nos perigos do viver.
meus pensamentos do músculo cardíaco são serenos e leves sobressaltos, como borboletas no estômago, fazendo cócegas em meio ao acalanto. como touro plácido no pasto.

quarta-feira, outubro 28, 2009

l'heure du chien-loup


a gente vai envelhecendo e vai dormindo menos, será?


em princípio, bem teórico, sempre quis dormir menos e menos (nunca dormi muito, insone crônica que sou), mas queria dormir menos de manhã, acordar cedinho, daquelas pessoas que pulam da cama super hiper dispostas, achando tudo lindo e cheias de energia.


sempre ouço que acordo muito engraçada, dizendo disparates. é um bom sinal, que conduz ao riso, invoca leveza pro dia e bom humor. mas é uma leseira letárgica, a que me assalta o espírito matinal...


sempre fui mais organicamente afeita à "l'heure du chien-loup", assim dizem os franceses. a hora do cão-lobo, que é quando o céu azula mais escurecidinho, no final da tarde se encontrando com a noite, recepcionando a lua. aqui, na minha terra, essa hora tens tons e laivos de alaranjado no céu, como se o sol dissesse: me vou e deixo meus cumprimentos à lua que chega.


aquela hora em que uivamos, querendo desfazer-nos do cão doméstico e por coleira civilizado, pra vazão do selvagem grito que nos entala a goela, pros saltos na noite até a linha do horizonte...


devo ser criatura crepuscular, embora me cause certa reserva essa palavra, tão sonoramente cara, em tempos de cultura pop adolescente e vampiresca...
p.s.: a imagem, do muito muito querido osvaldo goeldi, professor dileto do meu amigo gilvan samico, e que a este ensinou da arte do talhe e da circunscrição comedida das cores, uma pugência de sentidos.


terça-feira, outubro 27, 2009

post card from my brain


dear friend,
mais comum seria escrever-te em francês, se escolhesse uma estrangeira língua, mas Escher, o Mauritz Cornelius, me lembra Momus, o amigo caolho de músicas com letras incrivelmente barrocas na construção esmerada dos jogos de palavras... e Momus se constrói em inglês, eis o óbvio da sinapse.
queria dividir contigo essa imagem. queria te por a par de algo que ilustra a surrealista representação icônica de muito do que povoa meus pensamentos. imagens desconexas? ou uma cartesiana lógica, apenas pouco íntima de um conjunto de domínio público comum em larga escala? mas sempre fui da banda marginal, das exceções, que não gostam de excessos, ou só daqueles que tangem as raízes de um baobá pro fundo líquido e certo do chão.
o céu da cidade, querida amiga, permanece muito azul, alaranjando-se nos finais de tarde, na hora do chien-loup, minha preferida, do canto das jandaias em comboio, do nascer de luinhas no firmamento. e eu, no céu da boca, permaneço com aftas, que são úlceras e dizem da difícil digestão da lida diária. mas também, continuo demente, "funny lady", like the cat, of wonderland.
anéis de fumaça a ti. beijos ternos,
viajante e estrangeira.
(para Juana)

de longa muito distante data

uma linha lançada
em um acaso de rendas
e me construo pelos retalhos
como se cosendo em almofada antiga

bilros, palavra de evocações
herança genealógica

queria ser árvore de frutas amarelas,
quando criança

e fiz do rasgo dos teus olhos
tão pequena janela
a fonte de minhas perdizes
pássaros de larga passada
nas asas miúdas
de arfantes respiros

quero um nó de firme laço
do teu firme traço
nasce o pio da coruja
que me povoa o braço
e nos põe no mesmo ninho
mesmo tão apartados no espaço

segunda-feira, outubro 26, 2009

explicâncias inúteis

e lá vou eu, sem saber que lado tomar na via.
nem adianta toda tua retórica vazia,
posso até saber do teu tesão,
posso até saber da minha ânsia em te ver,
posso até saber do que poderíamos ainda ser.
mas sigo sem nem imaginar,
pra que lado vou me conduzir:
se te limo feito ferrugem e passo tinta nova no lugar,
se dobro a próxima esquina e somente sigo:
nem olho pra trás, nem cogito voltar.

pequena encenação

Abrem-se as cortinas. Uma galinha d'angola cisca a um canto e carcareja como uma ladainha cotidiana e sem sobressaltos. Entra a personagem, aturdida, como se viesse de uma situação de aflição, mas muito contida. Os indícios vêm de sua expressão facial contraída e consternada.
Pega uma vassoura a um canto e começa a tentar juntar as folhas do quintal, que o vento insiste em espalhar novamente.
(monólogo da personagem, ou talvez ela fale mesmo com sua galinha de estimação)

- Inácia, Inácia, tu que és feliz... a ignorância é uma bênção, um certificado de garantia para se ter alegria descomprometida com a vida. Eita, inferno, como se põe pra fora uma raiva dessa, raiva nascida de amor? Eu devia mesmo era criar uma amnésia e esquecer esse sentimento vagabundo que a gente inventa e alimenta e imagina. Vou cuidar de filhos, vou cuidar da lida, vou capinar e regar e curar das sementes... (vai resmungando baixinho, como se pra si, como se pra galinha inerte, que parece um mecanismo repetitivo, chacoalhando o pescoço em sua lida de ciscar).

A personagem começa a varrer com mais intensidade, com mais força, como se surgisse um pensamento que a exasperasse e ela traduzisse a raiva em movimentos.

- Droga, e este mundo mais imundo de meu dEUS! Nem tanto há que se limpe que se possa acabar com a sujeira. Ah, galinha desgraçada, tu também és uma sujeira da existência... Sabia que pra te comer, é preciso muito limão, muito vinagre de lavagem? A gente tem que te tirar o sobrecu, enfiando a mão nas tuas entranhas... Mas tem quem come bosta, bosta de verdade, né metáfora não. Tem gente que come teus miúdos, toma teu sangue à cabidela, briga pelo teu pescoço e rói teus ossos. Eca, põe teu pé na sopa... Ai, tô ficando ranzina e lamurienta!

Lá do fundo - das coxias - se ouve o chamado, uma voz gritando pela personagem.

- Maria, ô Mariiiiiiiaaaaaa! Vem timbora, mulher. O arroz vai pegar na panela!

A personagem meio que desperta lá de dentro de si mesma, perdida que estava. Levanta a cabeça e decide. Em seu semblante, está nítida a cara da resolução.

- É hoje e é agora, vou matar esse canalha, como um porco que ele é, e vou fazer um almoço pra chamar aquelazinha dele, a outra. Vou dar ele de comer a todos, a tudo que é gente nessa vila e, mais que tudo, às raparigas todas dele!

Sai resoluta e com um semblante frio de apaziguada.

*************

Cena final. Grande banquete, um caldeirão imenso, umas travessas com pedaços de leitão e, fervendo no caldeirão, um cozido imenso, cheio de entrechos de carne, de ossos e legumes. Cheio de cebolas também. Todos riem e comem, e esperam o dono da casa que, segundo sua esposa, deve vir até o final da tarde...

sábado, outubro 24, 2009

luzinhas

lá de longe, um ponto que treme, serve de orientação a quem está à deriva. mas em um assim estado de desespero, qualquer tora de madeira é alento. ai, que vontade de encostar! descansar o peso de um corpo, o próprio, que carrega mais do que sabe de si, que tem uma força desconhecida na hora do pecipício, mais do que no prosaico.

o pequeno gesto da mão na do outro, a atenção ao tropeço e, ao invés do escárnio, uma lanterna de aceno.
a gentileza, que a si mesma gera, reverbera, engendra.
oposta completa à grosseria: esta, suprema forma de desinteligência.

dEUS dos atoleimados, diria Hilda, minha mãe: livrai-me da grosseria. abraçai-me de paciência, que seja ela minha luzinha. amém.

sexta-feira, outubro 23, 2009

da série: pequenos pensamentos de vagalume

quase tudo, sobretudo quando tem corpo e palavra no meio, tem ambiguidade
quase tudo, sobretudo quando tem língua no meio, tem ambiguidade
quase tudo, sobretudo quando tem meio, tem ambiguidade
quase tudo, sobretudo, tem ambiguidade
quase tudo tem ambiguidade
quase quase
tudo tem ambiguidade
tudo tem
quase
tudo
ambiguidade


ao fim e ao cabo:
certeza

quinta-feira, outubro 22, 2009

da série: pequenos pensamentos de vagalume

sabe o que incomoda os outros? a gente estar em paz. tranquilo, bem ciente do lugar escolhido e assumido, sem se querer provar nada; sem gritos de ordem; sem atos de protesto e reivindicação. a vida se impondo pelo imperioso dela própria, natureza. a vida reconhecendo-se, os amantes se encontrando pelo reconhecimento; os felinos se encontrando pelo cheiro, se identificando pelo roçar dos bigodes. o amor se fazendo por líquidos seminais, pela multiplicidade de encaixes - que foge à capacidade tosca, óbvia e simplória da mediocridade, que teme tanta largueza de mar, que teme tanta liberdade em exercer-se onda, ressaca, calmaria, maré e devoto da lua.

sabe o que incomoda os outros? a incapacidade deles mesmos de se olharem no espelho.

eu, pirilampescamente - luzinha tênue -, acendo o traseiro e dou-lhes de rabo.

quarta-feira, outubro 21, 2009

os tropeços esperados

todo mundo tem pereba, só a bailarina que não tem
dizem os versos do trovador buarque...

mas a bailarina tropeça, acorda com o dedo roxo, um derrame que não se sabe de onde nasceu. a bailarina aposentou sapatilhas algumas vezes, depois de vez, depois voltou a ter a cabeça dançando, depois a bailarina começou a envelhecer. diziam que a bailarina não envelhecia nunca, com cara de menina levada, trelosa, sorridente. a bailarina dos cabelos assanhados, dos joelhos ralados, do tênis surrado; a bailarina com cara de moleque. a bailarina começou a envelhecer.

ela ainda acredita em pirilampos e colibris, ainda sonha ipês amarelos floridos, ainda sonha uma plantação de girassóis. ela ainda ama com fidelidade e acredita em envelhecer juntinho. a bailarina ainda não tem cabelos brancos, mas ela começou já a envelhecer. a bailarina não tem filhos, mas tem muitos de quem cuidar, espalhados e agregados ao espaço em volta dela. a bailarina não é encanadora, não é eletricista, não é médica nem veterinária; a bailarina não é mecânica nem sabe 8 línguas. a bailarina frequentou escola clássica, mas não é bem exatamente erudita. a bailarina não é palhaça, mas vive rindo e fazendo rir. a bailarina é criada por duas gatas e uma doninha.

a bailarina começou a envelhecer e continua sendo uma menina.

terça-feira, outubro 20, 2009

para Lelo

todas as cores do dia de hoje
do mais matinal raio de sol
a toda a aquarela de um arco de íris
do olho de artista
que ele, moço-menino
já enverga

numa ciência
sabedória de si
bem talhada no humor
constante
como sorriso de rio
perene

segunda-feira, outubro 19, 2009

exercícios de levitação

acorde-se letargicamente, depois de ter visto vários queridos afetos no dia anterior, tome-se água de coco bem geladinha, coma-se pão francês quentinho com queijo coalho assado, cheio de casquinha crocante. um banho na cria, outro em si mesmo. alguns beijos pra selar o início do dia, e leia-se um verso de manoel de barros...

quinta-feira, outubro 15, 2009

do último anel do círculo de hades

num poço fundo e pardacento de lama, nada da poesia de alice, nada de coelho branquinho atrasado, nada de lógica matemática. queda vertiginosa em chão ao mesmo tempo que fétido e lamacento, duro como rocha cortante, mineral lâmina. esfolado o corpo na queda, nem tempo de limpar as feridas, nem como até, segue-se o sangue mixado de dejetos, e a carne que se putrefaça em festa. água há em abundância além, até demais, no chuveiro que estoura e repõe a lida na ordem do dia. tarefas de lavar, passar, varrer, cuidar, consertar...
o taurino espírito se contrai, relembra as marcas de um passado longe mas à flor da pele e se contorce, querendo ser touro em chifre, músculos e carne, num pasto livre em que reina, pra meter os cornos e dar a quem merece o retorno violento merecido pelas aviltâncias desse tal ente, e agravante mais: o ente agride a própria cria. que mereceria tal estrupício, se não um corno de touro indomável pelo ventre, rasgando-lhe entranhas?
e me perguntam: em quem confias, então? só em mim, única resposta prudente. sei que há uns pouquíssimos outros, muito poucos.
e sigo na paciência impaciente de uma situação de impotência, e lendo/observando/constatando os energúmenos e egocentrados discursos alheios, tão cheios de si que não enxergam o tanto do próprio ridículo ao se colocarem de vítima todo o tempo, escondendo-se sob a máscara de muita segurança, muita verdade lavrada em cartório e uma suposta beleza inquestionável, que a mim nem um pouco encanta...

querida professora,

hoje é o seu dia, e como todo dia comercial numa sociedade capitalista e descartalizante (parece que começo com discurso panfletário, não é?), parece ser apenas uma forma de se vender alguma pequena bugiganga bem baratinha (igual ao valor que tua profissão recebe na nossa terrinha brasilis), ou, menos ainda, apenas pra se ter mais um feriado no calendário, um prêmio de consolação. no dia supostamente dedicado a ti, recebes uma merecida folga, distância do ofício, que muitos repetem ser um "sacerdócio": o pároco que tem por prêmio o amor divino, a misericórdia, o serviço ao supremo, mas nem somos sustentados pela "santa madre igreja católica", muito menos recebemos tantos dízimos que sustentam tantos pastores das mais várias seitas mundo afora.
eu, como premiada duas vezes, autônoma, não tenho nem a folga que me caberia neste dia. e nem me faz muita diferença. preferia que mais gente pensasse de verdade no sentido deste ofício, nas trocas, nas escolhas, nos laços e na responsabilidade. não tenho muitos freios na língua, embora escolha deverasmente as palavras (mas por respeito a elas e por imersão esteta na veia da literatura), somente reivindico essa integridade. dá licença, deixem a querida professora exercer-se à vera, como sói aos que têm fígado e intestino com escrúpulos e caráter.
obrigada.
e um bom dia, seja ele qual for, a todos nós.

segunda-feira, outubro 12, 2009

sobre o amor felino

uma língua áspera
que consegue emitir os mais vários sons
e limpa, como se polindo
as impurezas,
de um olhar que se perdeu
de sua antiga natureza


uma conversa tão vária
em sons e sentidos
que me chama
do pedido de água
à revelação do segredo
mais amigo

me desperta
pelo chamado rouco
e pelas unhas
me acarinha de olhos fechados
em eu te amo me pisca

o miado longo
na sede e na fome
quase um grito
nos resmungos diários

pelo zelo infindo
me vela o sono
me religa ao belo:


devoto elo
que filtra, feito escudo,
todo feitiço, todo mal
não exige nada
está sempre ao lado:
amor incondicional

quinta-feira, outubro 08, 2009

08 de outubro

dia de aniversário, da avó. em 2009, ano corrente: ela acaba de fazer 95 anos.
sorri, muito, faz questão de estar muito perfumada, limpa, de roupa nova e combinando. olha muito pro sapato, e diz: bonito. parece até que fala de outra pessoa. passou muitos minutos abraçada comigo, enquanto eu a "arrumava". dizia: bonita. falava mesmo de mim, de outra pessoa que não dela mesma? creio que sim.
e queria falar uma frase inteira, mas só saía: ahhh, ahhh. traiçoeiro cérebro, na área da linguagem, resolveu despedir-se por primeiro.
minha madrinha liga, filha dela, da avó. ao telefone, a agonia parece maior. não flui mais uma conversa. como se ela desistisse.
cheirosa, plácida, sentada. o sorriso e os olhos são a fala. a que resta.
enfim.

terça-feira, outubro 06, 2009

epístola aos incréus

de uma cidade que inventei para mim, aos 06 dias do mês de outubro do ano de 2009.

caros que me leiam,

porque aqui vieram conscientes e convictos de que buscavam palavras por mim escolhidas e arrumadas, ou porque aqui chegaram por essas obras do que se diz acaso... falei já algumas vezes esta semana: "dEUS está nas coincidências", quem assim arrumou tais palavras (das quais me aproprio) foi Nélson Rodrigues, obrigada a ele.

e se supremo urdidor morada se constrói justamente no que nos soa como obra do inaudito, do imprevisto, do que parece casual, penso nos astros, penso em stela, minha amiga das estrelas, e em cacá e alcides, que por ela também me chegaram como presente. e penso nas sinastrias, e penso por que me coube ser justamente a humana de estimação de zureta e nina (minhas felinas donas) e alegro-me de não saber todos os desígnios desse largo espaço temporal, ao mesmo tempo tão curto, em que nos cabe deambular pelo mundo.

resolvo, apenas, dedicar minutos dos meus pensamentinhos, como reza funda e devota, àqueles que me fizeram e fazem crer: os eleitos do amor de toda sorte, que no fundo é uma só; minhas raízes, minhas folhas e meus frutos, meus galhos pela vida.

dedico-me aqui aos amigos, que podem ser irmãos, pais, sobrinhos. ao avô, minha pedra fundacional. ao primeiro corte em minha carne tão criança, que me faz buscar a cura desde desde e encontrar os bálsamos em cada abraço e encontro de almas, em cada giro de astros, em cada cuidado mais mínimo. em cada pedacinho.

sábado, outubro 03, 2009

pendular

a luz no canto se insinua, amarela e tênue. entra mais por uma das várias frestas da porta, que é vazada, por uma parte superior de basculhantes de vidro, pelos quais o vento põe movimentos nos tecidos e papeis espalhados dentro da casa. como se anunciasse o dia a vir e anunciando a entrada do visitante sempre provável, nunca com precisa hora marcada.
os habitantes já se fizeram afeitos a uma rotina espacial, às sinestesias que compõem a galeria de sentidos do lugar. os visitantes chegam e esperam convite de entrada, às vezes, é tão natural que parece uma entrada sem permissão, explícita. mas adentram e precisam acomodar os olhos à nova luz; às novas dimensões; cheiros; percursos; sons.
a cada passo dado, a cada vão de coração preenchido: movimentos de idas e vindas.
é preciso transpor os cortes, nadar braçadas de mar, se reinventar.

(para o moço alexandre, recém reconhecido amigo de longa data, de alma)

quarta-feira, setembro 30, 2009

da visão

a gente faz força
pra ver que enxerga
sempre pedaço.


a gente
deixa de ser
míope,
mas pra descobrir
mesmo
que é cego.

domingo, setembro 27, 2009

domingo no clã

um almoço luxuoso, palavras de Raminho... comemos o já quase famoso "curupira", ou pirão de cozido feito magistralmente pela minha genitora. casa cheia, todos lá. muitas fotos muito antigas, de quando eu comecei a ter "janelas na boca", banguela (quem sabe na outra ponta da vida estarei de novo assim...), de quando era criança bailarina com a cunhada (e nem imaginávamos tudo que viria), de Lelo aprendendo a vitória régia (planta nome de professora), de Rafa sempre meu cúmplice...
um dia de rever passado em preto e branco cristalizado pelo foco do pai, de cabeça branca e sorriso de todos juntos, a beleza serena do rosto da mãe nas fotografias, a cerveja e a comida sem pressa. o pudim de leite que é uma reza, mais ainda com o café recém coado. a mãe lambendo-nos, as crias todas.
amém ao ampulheto: atravessadas a nado tantas tormentas familiares, permanecemos com laços sadios, conscientes dos joelhos ralados e vãos, mas em estado de possível festa: prosaica e, por isso mesmo, luxuosa.

sexta-feira, setembro 25, 2009

homeopática

eu ando tentando ser assim, a cada dia o seu cuidado; a cada inspiração sua exata medida de ar, para a expiração ser também apaziguada e os pulmões se alimentarem como lhes é devido.
mas parece que a respiração das palavras anda curta, acelerada, por extrema oposição à paciência que me é exigida. tento carregar nos bolsos apenas o trocado justo em cerzidura precisa às inquestionáveis e imperiosas demandas: nem quero negociar o elastecimento de nada. quero ficar calada, no mais agudo silêncio, feito coruja na toca bordando sabedorias muito antigas, enquanto gota a gota se opera a cura.

quinta-feira, setembro 24, 2009

El Camino Del Sur

- hay certas cosas, niña, que no debo decirte... pero intento llegar al mínimo, que es la presunción mayor del humano.

quarta-feira, setembro 23, 2009

natura/cultura: fraturas ocidentais.

vi ontem o anticristo, de lars von trier. ainda tô por lá, pelo éden dele: imagens lindas, torturantes, poéticas... revisão dos demônios do ocidente, brincadeira de esteta genial com os clichês e os cortes, as feridas, as lacunas de nossa ânima judaico-cristã...

sexta-feira, setembro 18, 2009

ralo abaixo

a teoria da privada e a modernidade consumista desperdiçosa... meu dEUS ampulheto, o que fazemos nós de ti? e lá é evolução, toda vez que algo quebra (porque a areia escorrendo é inevitável e o desgaste sobrevém), vai-se substituir apenas o defeituado e precisa-se trocar tudo, porque a tecnologia é infame, casada com a lógica mercadológica mercantil, e não tem mais a peça antiga, senhora... não fabricam mais... e lá vai a pessoa.
deixa eu contar a odisseia do armadegon, o dia do apocalipse now, o juízo final sob a forma de uma privada vazante.
foi assim meu dia: acordei e o meu banheiro era uma piscina particular, bem no dia seguinte à faxineira vir e deixar tudo impecavelmente limpo. lá fui, criança ordeira, enxugar tudo e descobrir de onde minava aos borbotões o líquido. A CAIXA DA DESCARGA TINHA RACHADO... como acontece isso, se nem fiz uma "festa na laje" em cima dela? como uma caixa de descarga racha assim, por obra e graça de fantasmagoria, sem pancada sem nada???
metafísicas.
dei descarga, pra esvaziá-la e corri pra fechar a torneira do registro. ufa, que ideia genial.
liguei pro encanador, sempre um diálogo e uma negociação bem difíceis. lá saio, urgentemente (isso sempre tem que acontecer no dia em que você não tem um minuto vago nem pra soltar pum), pra comprar outra caixa de descarga. no armazém, o homem (mais enrolado que carretel de linha) diz que não fabricam mais daquele modelo e é arriscado levar uma semelhante apenas, porque o encaixe pode não ser perfeito e vai vazar de novo! avestruzes me persigam, eu já quero consertar um vazamento, não vou me arriscar a outro. resultado: tem que comprar a caixa com bacia e tudo, completinho! delícia, mais caro, mais trabalhoso pro encanador trocar, mais serviço seboso na casa da pessoa... mas vamos lá, que a vida é assim: um filme de jerry lewis, uma comédia de erros.
compro a p***, corro e deixo com o porteiro e corro de novo e vou trabalhar.
somente à noite, o dia não acaba. chego às 22h em casa, o indivíduo veio e fez o serviço, sob a supervisão do outro habitante do lar e... ufa, vou ligar amanhã, pra ele corrigir o serviço seboso, sem acabamento etc...
NÃO! vou ligar, porque amanhece, agora, vazando o chicote da descarga!
jeová! jesuscristinho dependurado na cruz com aquela roupinha que mais parece uma fralda de lençol, perdoai-os, eles não sabem o que fazem! e a caixa de descarga veio, novinha e com defeito. e o encanador vem de novo hoje, pro segundo turno do serviço interminável.
até o armagedon e o apocalipse now da minha vida, literalmente, privada têm que durar mais de um capítulo?

segunda-feira, setembro 14, 2009

sobre metáforas arbóreas e a invitável tarefa das escolhas

um galho pode parecer frondoso e confortável, pra nele se fazer morada, atar braço de rede, abrigar-se sob a sombra... outro mais mirrado, ao lado, menos tentador; talvez até denotando aparente insegurança, fascina pelo tênue que traduz, pelo desafio, pelo encanto, pelo sabor dos jovens frutos a se colher. da terra das árvores, é preciso saber a hora de ser baobá, a hora de ser ramagem ligeira de canto, galho espinhoso de pau brasil, pé de acerolinhas.
ah se as jacas tivessem a gentileza das melancias, de nascer ao rés do chão: fruto denso se colheria sem riscos.
melhor exercitar o inevitável. nos jardins do mundo mais prosaico é como já viu Borges: as veredas se bifurcam, e se multiplicam como as paralelas (ao infinito), mas sem garantias de encontro lá no dito fim que não termina... abstração matemática por excelência.

sexta-feira, setembro 11, 2009

sobre ontem

um dia dedicado a lembrar um amor perene, mas com crises de intermitência. o desconhecimento esporádico e reincidente, às vezes, nos faz animais ressabiados. mas a lição natural das raízes nos refaz dos sentidos primevos, de carne e sangue: laços de origem. não havia como não pensar nele. nos aprendizados afetivos, nas quedas, nas perdas, nas construções... na tão gemelar similitude, que desde sempre nos fazia confusos os gêneros, até para os examinadores externos.
ele, o menino. eu, a menina mais velha. tão pouco mais velha, quase nada. divididos os peitos, os medos, os brinquedos, as dores de crescimento.
livros lidos em paralelo; escritos partilhados. noites escondidas, roubadas às interdições paternais, em que o relógio nem importava. o abraço que me religava ao melhor de mim, sempre. o motivo das minhas brigas, o motivo de eu saltar sobre qualquer um: defender o menin0.
quis o menino-homem, sempre lindo e sem perder o menino. sem perder o ingênuo sorriso, o lúdico, o afeto. era o mais doce menino que conheci. o sorriso me fazia querer ser mãe dele, e fui. atropelei a ordem natural e fui mãe do menino.

as estradas se bifurcam e as decisões se vão acumulando a cada encruzilhada. numa malha cartográfica de vida, a gente já se perdeu tanto. esquecemos de artifícios da infância: mãos dadas sempre, um novelo de corda, os assobios, até os tecnológicos rádios comunicadores...
os acasos por vezes nos religam, porque da ordem atávica dos perenes. e me alimento do verde inseto da crença, a cada sopro de sorriso do menino, quando sinto que ele ainda é meu filho. quando sinto que ele ainda ama a sua mãe, ainda consegue vê-la sem máscaras e sem receios. quando o menino ama sua mãe sem ressalvas de ordem normocrática.
eu desejo ao menino, no dia em que todo ano ele renasce: olhos sempre puros, pra enxergar de verdade. a ele mesmo, a mim (sua mãe) e a nós: esse laço que é nó, e nada devia ameaçar.
eu desejo ao menino a sabedoria de que amor não se mede; não classifica, não julga: até diz não, pra se preservar e crescer. mas é incondicional.

quinta-feira, setembro 10, 2009

no talo

assim, quando nenhuma maquiagem encobre, nem mesmo se pensar na fantasia lúdica de palhaço, na máscara do baile à fantasia, no saco de papel com buracos apenas pros olhos...
no talo, eu hoje acordei assim. da minha refinaria pessoal, só saem desejos de que o ampulheto escorra ladeira abaixo, ligeiro como susto e um fulminante infarto. me leve junto na corredeira, como embrulho orgânico de ébrio: massa, ossos, vísceras, líquidos... tudo desarmado de prevenções, entregue ao passo em falso, suspenso como funâmbulo hipnotizado. no gabinete de Caligari, eu mesma, sonâmbula imperadora dos fantasmas e expressionismos esconsos de uma arquitetura que não cabe na ordem pré-fabricada, e que cansou de ser responsável, comprometida, infalível. quero um imenso erro deliberado e inconsequente, mas não de todo pressentido, que me salve do meu inludibriável bom senso e juízo.

quero entalhar - no talo, na raiz, no fundo oco de onde me brotam os pântanos - as cicatrizes visíveis, doentes e reincidentes, dos cacos de lixo que recolho por onde passo.
das arestas de galhos infrutíferos, ou pestilentos e amargos, onde se instilam os venenos mais brutos, banho e nasço a eficácia do meu relato.

terça-feira, setembro 08, 2009

a arte da paciência

determinadas esperas são o mais dilatado espaço do tempo. e vera arte é atravessá-las a nado, sem sufocar-se no próprio respiro - que se torna curto, por vezes, porque a alma se indigna, quando assim sufocada.
beber do justo caldo, saber-se merecido dono: e estar-se além do que é direito!
árvore muito antiga, cujo tronco se vê talhado pelo estúpido ego de semianalfabetos: em si, na língua, no tato...

quinta-feira, setembro 03, 2009

da arte de untar besouros

adestrar lagartixas em coleira de cordão
ouvir dos outros que me desencaixava
tinha quatro olhos,
orelhas de abano
bronze de vela, macaxeira, fantasmagoria
e tamanho de levar safanão

ainda era pior
padecente de uma timidez desinibida
estranho jeito de proteção
falava, ria, contava causos
como se nada abalava a fundação
de mim

era agonia, mesmo assim.
alguém sempre apontava
rente
o rabo do gato por trás da cortina

brincadeira de esconde-esconde
comecei a constatar
que desencaixe era via-mestra
regra do jogo
pueril até

finquei estrela no esquisito
pago preço
compro risco
e de larva a borboleta
faço o caminho do riso
e chovo vez em quando
porque germino

terça-feira, setembro 01, 2009

mundo cão

ô expressão infeliz, a que aderimos sem nem sentir. quanta paranoia e loucura gira em torno de tudo: qualquer afeto, qualquer aproximação que mais quer expandir o bumerangue das melhores proliferações pode se tornar o que nos fere. e somos obrigados até a fingir que somos algo além, e eu me recuso a não ser o que sou, se assim me forjei em amor e compreensão: o que me salvou. apesar de todas as pedras e ladeiras forçadas abaixo, permanecerei respeitando a privacidade e a dor alheia. ah, meu querido personagem confidente, podes me testar em oráculo e providência e destino e fardo e fato e lenda e sina e sorte, ou como mais de sinônimos se faça o que me cala e o que me imanta a alimentar a alma de poesia - que um dia nos redimirá e forjará o mínimo da resistência necessária para que o mundo seja de fato cão, no melhor sentido: o de cão, não o de gente (que se projeta nas merdas que inventa como códigos de boa conduta, normalidades repressoras e falso-moralistas).

(ao último dos felinos que resgatei de pés humanos assassinos, e a todos aqueles que regulam o amor alheio e suas formas de existir, e a todos aqueles que nos querem fazendo o que eles próprios fazem e não o que nossa mais funda natureza nos sopra... desejo não apenas um mundo cão, e sim um mundo animal, menos humano, por dEUS).

domingo, agosto 30, 2009

especulações numa conversa entrecortada

palavras
umas soam engraçado

são sonoras

outras parece que travam

ou arranham
como pra traduzir um sentido áspero

umas são úmidas
como escorregando
por saliva de boca faminta

outras visgam
como sedento músculo

língua
quando trava
esperando água

sexta-feira, agosto 28, 2009

RG: a língua do grande ser tão...

quando eu dizia: “balão”, ele sabia. era o socorro necessário, pra o “me tira daqui”. “ei, coruja, me pega no balão. tem chá que queima azedo lá fora” isso queria dizer: "vô, te amo. me tira daqui e vamo tomar sorvete.” uma língua inventada no feliz, a possibilidade de ser sem sacos de areia, sem corda, de existir como balonista, que vai se despindo dos pesos pra subir e ganhar voo.

segunda-feira, agosto 24, 2009

mirantes passeios

um dia se foi,
a mirar-se no espelho
narciso inverso
das águas saía-lhe
não um encanto,
mas um susto primeiro:
via-se sem máscaras,
com a face por inteiro.
os vincos, as rugas, as dores
os medos...

e lembrou de alice
a menina loura
que não queria ser louca
que buscava a razão
e perdeu-se nas terras
das maravilhas e
dos espelhos
com uma rainha de copas
um gato com sorriso e sem botas
uma lagarta fumante
um chapeleiro maluco
e uma lebre atrasada

no fim de tudo,
alice só encontrou a si mesma
ainda mais enraizada...
e ele voltou pra si mesmo
sua única casa.

terça-feira, agosto 11, 2009

cada cão

Cada cão com o seu dono
e a vida segue seu
prumo
particular
mas quem decide rumos
pensa em impérios
nas potências
e não
nos aparentes fáceis trocadilhos
com os impropérios e as prepotências
todos mais cabíveis que o ônus
de se ser um cão sem dono

ou mais incabível
aparente miúda lógica
inversa:
um não dono

domingo, agosto 02, 2009

felinas (pra Zuzi e Nina)

me chama com um sorriso
de olhinhos piscando
é quando
se declarando
retorce o contorno do corpo
e vira-me as costas

quando te acarinho,
te falta ainda mais a voz
e me tomas a mão
como brinquedo

enrolada como num ninho

depois o salto e
os olhinhos

piscam outra vez

um miado rouco e leve
de quem diz:
agora já foi

enrolada como num ninho

depois o salto e
os olhinhos

piscam outra vez


quero meu canto,
me deixa aqui
estátua de pelos

enrolada como num ninho

vou enfeitar tua vista
e velar teu sono
de passarinho

quarta-feira, julho 29, 2009

passarinha

vida despregada
de seus matizes
despluma sua
embriaguez

como prisioneira
no papel

verte a noite
num espelho
opaco

raiz que é
em si precipício
e funambula
na bamba linha
da beira do asfalto

ave de verso
recolhe-se
de seu destino
a cada todo dia

ave que sorve
o corpo do sonho

e grita num mudo
instante
de uma mirada

sexta-feira, julho 24, 2009

coisas do querer

tempos imperativos
um miado mais agudo
e zás

vem, doninha, chega logo
pro meu sorriso se alargar

mas o ponteiro das horas
se tarda:
e a chave nunca gira
me trazendo a moça amiga


vem, doninha, chega logo
pro meu sorriso se alargar

a espera me põe sobressaltos
as compensações restam
como abrigo

o vinho que talha
o leite para avinagrar
as maçãs se vestem de cobre
as roupas dançam
ao vento do varal
até já cansaram de secar

e a música
sempre recomeçando
pinta de ladainha o meu canto
põe as tristezas no meu carnaval

são tantas vontades
os verbos querendo exigir
mas só há
um único ponto de fuga:
a moça é
o mapa pra me apaziguar

vem, doninha, chega logo
pro meu sorriso se alargar

sexta-feira, julho 10, 2009

circular

do ciclo, do que nem os oráculos nos precisam clarividenciar: a paixão é reincidente e renova-se, tão logo se abra o peito para ela respirar. sempre me encantou a ideia de permanecer renovadamente imantada a um veio, a um amor: planta, bicho, água, alguma gente. aprendi menina a ser a velhinha mais companheira de meu avô, e a paixão era todo dia, mesmo quando com cara de abuso.
hoje experimentei, como sorvete de novidade que arregala os olhos e paladar, língua gelada e cócegas felizes: Rafa e Lelo. Uma brincadeira boba de "bunda pra cima, titia morde"; de procurar camarões daquela cor que a gente não vê, "descoloridos, sabe, tia?"; de dar banho seco nas porquinhas-da-índia (e eles nem conhecem Bandeira ainda, vou levar pra eles um dia). Relógio novo, acertar a hora e o dia, rever a cumplicidade e as rememorações de um menino de oito anos; de outro de quatro, muito falante e muito sedutor. Laços que não se desfazem, à revelia de qualquer movimento do mundo que gire ao avesso.
sorriso largo e dia repleto. peito aberto ao que de melhor me vem do páthos.

segunda-feira, junho 22, 2009

Lavanda

água de colônia
patuá
uma mandinga vou fazer
pro teu cheiro me marcar

feito ferro
brasa em brasa
no meu corpo te traçar

fazer um incenso do teu cheiro
no meu pensamento
cada vez que te evocar

feito
brasa em brasa
a ferro
no teu corpo me traçar

pelas narinas me vêm
tua imagem e teu gosto
porque teu cheiro é tanto
e ainda tão pouco

com águas de cheiro
batizo teu gosto
te cubro o colo
com o suor do meu rosto

brasa em brasa
um batismo de lavanda
feito ferro
no meu corpo

teu nome vou gravar
com linhas de perfume
pra te seguir e me achar

segunda-feira, junho 15, 2009

prisma

o lilás dos teus olhos
foi luz de que sempre
me alimentei

além desse porto
o que rescendia a lavanda
me era inaudito incômodo

nunca pensei os porquês
logo a mim tão caros
pela frequência das visitas

e um dia
pelo avesso vi
que a lavanda luminosa
dos teus pórticos
me era a saudade
lembrada como ponta
de faca

exercícios de memória

redesenhar as linhas
as covas e montes
do teu rosto
para lembrar tua boca
e meus aprendizados

perguntar encavado fundo
em meus ouvidos
lá de dentro
onde nasceu assim
conseguir ainda te escutar
tão límpidas as palavras

- não se deve esperar do outro
o que ele não pode dar.

- mas não se deve dar além de si
ao outro
fazer-se tatame de opulências
leito de riscos
deve-se aprender o desapego
de si mesmo
no molde de não se ver
leite derramado

(se aprendi ao certo
não sei,
completo-me
com o que sinto
e persigo)

exumando sentidos

água de lavanda exala
do teu corpo
limpo

e me arranca
do conforto de máscara
em que eu me tinha
escondido

meus dedos precisos
então
a lembrar-me
dos teus cabelos

desalinho meus rosários
e as guias da minha benvinda
desamarro o tempo

sigo sozinha

segunda-feira, maio 11, 2009

Sem amarras

a forma mais simples que me ocorre de expressar:
queria dizer com a maior precisão
sem que a metáfora abrisse mão de sua pessoal polissemia
eu queriaque se fizesse entender de múltiplo jeito
único
o que a falta de ti
em mim faz existir
uma morte devia ser fim
mas quando um se vai
ficam todos os outros
condenados a uma permanência

o que a tua ausência deixou em mim

o que a tua ausência deixou em mim
é a maior e melhor parte do que sou.
herança genética é somente razão

quero mesmo o saber de sentir,
que nem mesmo carece de explicação
apenas constata-se: é!

a forma mais simples que me ocorre de expressar:
é poder torcer a gramática
elastecer regras para caber
nelas o indizível
nelas o que não se pode medir
um diapasão que rompe os metros
um reverso de mim.

sorri de uma dor,
porque no meio há a lembrança
feliz e indecente
do dia em que aprendi:
a cada três passos meus
chegava em ti.

o abraço era a distância maior
entre a gente,
porque meu olho já te dizia:
mesmo quando fores
romperei peito e casca
crostas que nem sei ter
mas permanecerei em ti
que me levas e me deixas
te fazer seguir

sábado, maio 02, 2009

entre bichos

criada entre bichos, bem sei o quanto de cheiro importa. e tem horas em que apenas ele é a medida, termômetro de em quem se pode depositar o último níquel, nem sempre monetário. aliás quase nunca, que será essa a mais obtusa interpretação de valor, sempre. nunca, amém independente do cristo eu digo, fui talhada para não ser o que no fundo de mim eu sou. maktub.

como reger a própria rotina pela partilha, compromisso, palavra que se crava tão fundo, quando cristalino é o seu entendimento.
e decidi partilhar a vida com felinos. elas a me dar muito mais, generosas e entregues, do que os pequenos supostos sacrifícios que eu lhes possa jurar fazer. e eis que me sei muito mais e melhor, e aprimoro-me, justo apenas pelo que delas, e com elas, aprendo.

sábado, março 07, 2009

cais

onde a fronte atraca
em interrogação:

extremo em que
não mais me sei

deriva
dúvida
luz

nau em que não mais seguirei
porto onde não atraco

minha âncora
arrasto

certeza:
não mais me sei

domingo, fevereiro 15, 2009

Carnaval

era um tempo bom, tão bom. era um tempo, literalmente, de fantasias. hoje tem cheiro amarelado de saudade, no álbum de fotografias do tempo de eu-menina. Bailarina, índia, macaca e tantas mais eram minhas indumentárias, para passear com pais e irmãos por uma cidade em que as orquestrinhas de frevo eram afinadas, em que se podia ir atrás do bloco, em que se podia levar as crianças e dançar no meio da rua sem parecer uma guerra civil...
hoje, eu sinto só uma nostalgia, um barulho agoniado, uma superpopulação que nada pode disfarçar. e se esvaiu a possível poesia de outros carnavais... se esvaiu a poesia da minha meninice fantasiada.

sábado, janeiro 24, 2009

estória de passarins

hoje acordei com a visita de um primo passarim. era um vira-lata da estirpe dos de asas, um reles papa-capim, um dos plebeus voantes de que mais gosto. essa ausência de nobreza lhe dá um sentido sobretudo de levezas. ele me adentrou pela varanda, veio dizer-me de coisas do tempo de eu menina. lembrei-me de um aniversário me feito pela mãe. ela é mesmo intérprete fluente de criança. ela me fez de presente um bolo imenso, que de longe tinha certos ares de... vulcão. era um formato atípico para bolos, mas minha mãe sempre gostava de inventar novidades. a minha roupa nova de parabéns era amarelo canário, tinha umas caixinhas com bombons que lembravam ninhos. era mesmo um aniversário de passarinha. mas o mais melhor veio na agonia da hora de cantar parabéns. o bolo ficara na cozinha, guardado, esperando a hora de entrar em cena. mas ninguém se deu conta do porquê. é que havia um convidado especial. o bolo tinha uma fita azul em cima, cantaram-me um parabéns meio afobado, apressado. aí, sopra a velinha e puxa a fita. sai voando um canário azul, maravilhante, de dentro do meu bolo. minha mãe me deslumbrou por dias seguidos com esse passarim voado de bolo, pareceu coisa de mágico. e o canarinho viveu e deu nascença a uma dinastia canária em meu lar. eles viviam num viveiro enorme e mesmo quando eu os soltava, eles voavam e voltavam pro viveiro. aprendi de prática a criar-me passarim solto.

terça-feira, janeiro 20, 2009

conjugal

as vezes
ser um casal é sair de si pelo outro,
as vezes é o justo oposto.

domingo, janeiro 18, 2009

A Breve Fábula da Pulga

Parasita dos parasitas, xingam-te aos dias. Asco e nojo, imundície, ausência de higiene até dos donos de teus “donos”, ou hospedeiros, mas bem politicamente correto. E por quê? Por sugares quem dos homens supõe-se melhor amigo. Mas parasitarias o cão, ou o próprio dele dono? Se é o pobre cão afabulário ser, apenas o zé que do lado sempre permanece, o rabo elétrico de vida, o que não contesta, tu o atacas, mas para dar medida de fraqueza do dono.
[Como nem de um melhor amigo se sabe cuidar? É só o que o teu cãozinho te pede, um pouco de comida (ração industrializada, que já vem balanceada, alta tecnologia nutricional), um pouco de afago, e um eventual ritual higiênico de banho. Para que tu, o dono, possas gozar do privilégio de não prescindir de teu cão, mesmo nos aposentos mais privados do lar.]
Mas, voltando a ti. E não adianta, nem mesmo, que algum prazer queiras dar àquele macio pêlo, com a coceicinha prazerosa. És do mundo sub, do mundo i, do que deve ser exterminado, como prova de assepsia. És inimigo número um da sociedade capitalista organizada em mercados globais, e existirás sempre, sem o extermínio definitivo, não pelo poder de regeneração da tua natureza, mas como alimento ao nicho de mercado que se ocupa em sempre descobrir novas e (in)eficazes armas de combate à praga-que-és-pulga.
O sonho teu, então, é: engolir a própria língua, a sensação é de fracasso, incompetência total. Quando se é uma pulga que não encontra endereço seguro, espaço exilado interno e externo, único falante de uma língua muda e morta. Tudo em teias de aranha e mofo por dentro. Em verdade, nem muda o cenário, só tua auto-comiseração travestida em orgulho. Moça esnobe, aristocrata dos becos, descontente se alojada em “hotéis” sem pedigree. O único órgão que pulsa é a cabeça, acompanhada por muita dor, para que a pulga saiba-se ser inferior na hierarquia viva universal.
E nem adianta alegar envolvimento emocional, ou talvez impossibilidade de vivência apartada de tua moradia. Em resumo, não te apaixones por aquele que julgam ser tua vítima, serás sempre algoz!
Então: Olha para trás, pulguinha. Que abrigo construíste; como é a tua morada? Lamacenta toca, aparentemente plástica e higiênica, mas cheia de bolor a cada canto não observado. Pulguinha, te deixaste convencer da sina parasita, para do ego fugir. Sofreste a pena maior, de pulga te foste humanizando, criaste mãos, dedos, olhos, nariz e boca. E o teu sexo equivocado. Esse, sim, o mais irônico presente dos teus deuses. Não há como negar o material de que foste feita, origem é bagagem da qual ninguém se pode desvencilhar, a não ser pela renúncia à consciência. A não ser que aprendas a, todas as noites, seguindo rígida disciplina, sonhar e engolir a própria língua.


MORAL DA HISTÓRIA: Não adianta a uma pulga querer ludibriar sua natureza.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

historinha nem tão singela assim

o ouriço é uma espécie espinhosa, aparentemente inofensiva, mas que, quando em perigo iminente, eriça todo o seu corpo espinhoso como defesa. quando eu nasci, não sei por qual confluência de astros, ou escrotice do tempo (que eu batizei de Ampulheto e é dEUS), me foi dado escorregar de entre as pernas da minha genitora numa hora em que jardins secretos no universo inteiro estavam sendo assaltados, ameaçados de invasão e destruição, pela desimaginação completa. aí, resolvi brincar de inventar palavras, desde muito criança, e um dia inventei que o telhado era perto, e o céu era chão possível e eu podia cair e cair e cair até o chão me acolher. quando caí, não era assim, a fantasia se distraiu no meio da queda, e minha boca aberta na queda engoliu um ouriço que passava fugindo de um ataque predador. ele mora no meu estômago, e foi criado em mim: versão crua de verdade.
e isso de enfrentar leveza de morrer me é fácil, difícil é viver leve quando se fala outro idioma, um dialeto próprio.
por exemplo: quando falo de amor é, sem sustos, no sobressalto do se for construindo, enraizando, pulando corda de mãos dadas. eu sou um bichinho quase inofensivo, porque a minha raiva aqui dentro é muito grande, mas eu aprendi a arrotar meu estômago engasgado, só o ouriço me fura, de dentro. eu não ateio fogo em ninguém.
quase sempre, tudo de que preciso é um silêncio, um abraço longo.
o que é muito ruim são as intermitências do que dói. eu sou curada a cada volta do latejamento.
por isso o sexo me é uma coisa bastante particular. um dia, quem sabe, talvez, entendas. não é nem que eu seja obscura, é que meus desvãos são a parte maior de mim, buraco fundo, sem luz.
e sempre parece que quanto mais explico, mais metaforizo.
sou, então, opacidade e (in)lucidez?

sábado, janeiro 03, 2009

mais uma volta

... no calendário dos 365 dias, cada vez num tempo mais relativo, mais corredor. os dias com menos de 24h. mas foi uma chegada tranqüila, sem alarde, como a mim agrada. poucos e queridos, família, "the other half", amigos queridos e um sono. sem roupas novas e apertadas, fingimentos de finesse (que não tenho e de que não gosto, nesse sentido). novo som, novos ventos.
sem alarde. serenidade e leveza, tudo que sempre reitero: pedido.