segunda-feira, outubro 26, 2009

pequena encenação

Abrem-se as cortinas. Uma galinha d'angola cisca a um canto e carcareja como uma ladainha cotidiana e sem sobressaltos. Entra a personagem, aturdida, como se viesse de uma situação de aflição, mas muito contida. Os indícios vêm de sua expressão facial contraída e consternada.
Pega uma vassoura a um canto e começa a tentar juntar as folhas do quintal, que o vento insiste em espalhar novamente.
(monólogo da personagem, ou talvez ela fale mesmo com sua galinha de estimação)

- Inácia, Inácia, tu que és feliz... a ignorância é uma bênção, um certificado de garantia para se ter alegria descomprometida com a vida. Eita, inferno, como se põe pra fora uma raiva dessa, raiva nascida de amor? Eu devia mesmo era criar uma amnésia e esquecer esse sentimento vagabundo que a gente inventa e alimenta e imagina. Vou cuidar de filhos, vou cuidar da lida, vou capinar e regar e curar das sementes... (vai resmungando baixinho, como se pra si, como se pra galinha inerte, que parece um mecanismo repetitivo, chacoalhando o pescoço em sua lida de ciscar).

A personagem começa a varrer com mais intensidade, com mais força, como se surgisse um pensamento que a exasperasse e ela traduzisse a raiva em movimentos.

- Droga, e este mundo mais imundo de meu dEUS! Nem tanto há que se limpe que se possa acabar com a sujeira. Ah, galinha desgraçada, tu também és uma sujeira da existência... Sabia que pra te comer, é preciso muito limão, muito vinagre de lavagem? A gente tem que te tirar o sobrecu, enfiando a mão nas tuas entranhas... Mas tem quem come bosta, bosta de verdade, né metáfora não. Tem gente que come teus miúdos, toma teu sangue à cabidela, briga pelo teu pescoço e rói teus ossos. Eca, põe teu pé na sopa... Ai, tô ficando ranzina e lamurienta!

Lá do fundo - das coxias - se ouve o chamado, uma voz gritando pela personagem.

- Maria, ô Mariiiiiiiaaaaaa! Vem timbora, mulher. O arroz vai pegar na panela!

A personagem meio que desperta lá de dentro de si mesma, perdida que estava. Levanta a cabeça e decide. Em seu semblante, está nítida a cara da resolução.

- É hoje e é agora, vou matar esse canalha, como um porco que ele é, e vou fazer um almoço pra chamar aquelazinha dele, a outra. Vou dar ele de comer a todos, a tudo que é gente nessa vila e, mais que tudo, às raparigas todas dele!

Sai resoluta e com um semblante frio de apaziguada.

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Cena final. Grande banquete, um caldeirão imenso, umas travessas com pedaços de leitão e, fervendo no caldeirão, um cozido imenso, cheio de entrechos de carne, de ossos e legumes. Cheio de cebolas também. Todos riem e comem, e esperam o dono da casa que, segundo sua esposa, deve vir até o final da tarde...

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