Sonhando borboletas furtacores
É delas que nasce o ovo, muitos. Depois vêm os bichos-da-seda, é assim mesmo que se chamam as lagartas, que vêm das borboletas (e não o contrário). As lagartas vêm depois dos ovos, e viram crisálidas, depois que fazem a seda e dela uma casa. Só depois de dormir e virar crisálida, dentro do casulo, elas saem borboletas. A borboleta é um primeiro travesti da natureza.
Ontem eu aprendi que tudo vem do mar, segundo uma amiga. Então, quem veio primeiro: o ovo ou a galinha? A lagarta ou a borboleta? A resposta é sempre: o mar. E todos vieram do mar. Achei um alumbramento isso.
Voltando ao fio, da seda. Assim é chamada a baba da lagarta: uma secreção de filamentos com os quais constrói sua macia e cômoda habitação. A lagarta é uma primeira costureira da natureza. E mora, estilista de moda, na sua própria veste. O mundo da costura, dos ornamentos e das vestes: é um mundo de câmbio, de travestimento, de transformação. A engenharia do casulo leva de três a cinco dias para se encerrar, e a lagarta lá se encerra, também. imersa completa, lá dentro, outra transformação: vira crisálida. Lindo nome: crisálida, uma personagem e tanto. Mas crisálida é ser em transição, só é lá dentro, no oco do casulo. Quando ao mundo se abre, já foi passagem, não é mais. A borboleta nasce.
Parênteses: homens acham-se os reis da natureza, inventores da costura e da moda. São larápios que “fazem” a seda pelo roubo da casa alheia. Pilham casulos. A colheita da seda encena uma pequena e imensa tragédia: a manufatura de uma única peça representa a morte de milhares de borboletas futuras.
Voltando à trança, da seda. As etapas do processo de criação da seda usurpada: os casulos são mergulhados em um recipiente com água quente, para matar a crisálida e amolecê-los (é que eles têm uma espécie de goma, que cola os fios uns nos outros). Depois, com uma espécie de pincel, vão-se girando os casulos, apanhando as pontas dos fios e desenrolando-os gradualmente. O processo se resume em desmanchar o trabalho feito pela lagarta. Os fios desenrolados vão sendo enrolados em uma roda, formando uma meada. As meadas são lavadas em água quente, batidas e purificadas com ácidos. Sucessivas lavagens depois, a seda é secada e as meadas são desembaraçadas e penteadas, obtendo-se fios macios e iguais. Pronta a matéria para a tecelagem, a humana.
Não gosto dessa matança de borboletas. Devíamos criar bichos-da-seda, pela beleza que eles são. Sim, lagartas são bonitas, mesmo antes de borboletas. Lagartas comem folhas de amoras, eis sua dieta predileta. Pode algo ser mais poético? Um mundo de amoras, onde lagartas se arrastam, fazem casulos e borboleteiam. O mundo seria um grande estômago repleto de borboletas: sintoma de amor.
Assim caminho pelas palavras, ou melhor, esvoaço por entre elas. Quando me alumbram, de encantamento mesmo, assim: vagalumes de Guimarães Rosa; rutilâncias de Hilda Hilst; labirintos de Borges e Cortázar; pirilampos pelos versos pelas prosas, luminâncias barrocas de Néstor Perlongher; os fios que tece Copi e não pára, não se cortam, vão contínuos numa veste que se transveste, que é transgênero... Uma lista que se renova de somas, borboletas parindo outras borboletas que nascem de casulos, que por sua vez nasceram do ovo da borboleta, que vira lagarta e depois crisálida e depois, enfim, de novo, borboleta.
A borboleta inventa ela mesma! Ah, um outro nome pra borboleta é ropalóceros. E eu achei isso um achado, um aprendido de som, bonito: uma proparoxítona enigmática que roça de sons na nossa garganta e tem um pulo bem no meio: ro-pa-LÓ-ce-ros. Talvez o fascínio das donas do nome (as borboletas e o que elas inventam, e o pó de pirlimpimpim que elas largam quando voam), ou a seda que elas babam, quando lagarteando, ou mesmo o fascínio da ignorância de um nome bonito, que a gente até demora pra decorar. Ah, gostei do nome, e pronto!
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