sábado, fevereiro 27, 2010
incomunicabilidade
sempre a saudade é alegada
pela voz do outro lado
na longa distância física
de uma onda sonora
quando poucos metros
facilmente vencidos
trariam o abraço
do lado seco da margem
o rio represa
um choro calado
(imagem: Emmo Tree by tator_tot_1158 in media.photobucket.com)
terça-feira, fevereiro 23, 2010
brainstorm
as vezes vivências passadas, sobretudo as mais traumáticas, insistem em bater-nos à mente. a sensação é de uma tormenta de memórias embaçadas e embaralhadas a ponto tal, que descanso as duas mãos sobre o teclado, como a sentir e invocar o desejo de conseguir que elas se movam eficazmente, construindo as devidas palavras que traduzam as imagens, palavras, cheiros, sons a assaltar os sentidos.
e quase instintivamente, a personagem se vê abrindo antigas correspondências, daqueles que tiveram forte passagem em sua vida e saíram de forma um tanto brusca, ou ainda nela estão (mas com uma distância herdada da mudança no registro da relação). e começa a julgar-se, implacavelmente. pensa na provação pela qual está passando, pensa se a merece, se a fez por merecer. pensa nos possíveis maiores significados que existam no funcionar das engrenagens do universo para que assim esteja vivendo.
o quanto de prudência e planejamento sempre teve; a forma generosa de relacionar-se, a disponibilidade: tudo isso em choque com a sensação de isolamento, uma timidez não pressentida por terceiros, uma viga fincada no estômago.
a personagem tenta um fluxo de consciência, mas as palavras escapam. a personagem tenta chamar a atenção do narrador supostamente onisciente, mas que parece nem conhecê-la, de tão distante que está de perceber o que vai pela mente dela, suas angústias e seus temores.
o narrador a pinta, com sua autoridade de conhecedor total, como plácida, tranquila e contente. quando o que ela sente é medo, até de mover-se.
invoca, ela, até o seu criador: pergunta se ele se assume como narrador, ou se disfarçou-se em uma segunda instância criadora (o narrador, uma criatura-criadora produzida pelo que escreve).
ninguém ousa respondê-la. ou ninguém a escuta, tão absortos estão os dois (ou um só? narrador e escritor) que a julgam impiedosamente sem ouvi-la, ao menos?
a personagem, então, ao não conseguir a solidariedade daqueles que a tecem, decide pelo mergulho nas fundas águas de suas vivências passadas, negando-se a fazer coerência com os atos e supostos pensamentos a ela impingidos. a personagem abraça um silêncio que obriga o papel a permanecer branco. a personagem contamina autor e narrador com um bloqueio criativo, enquanto busca, ela mesma, as palavras que talvez possam traduzi-la...
(imagem: cena do filme kasaba, de Nuri Bilge Ceylan, fotógrafo e cineasta turco)
sexta-feira, fevereiro 19, 2010
intervalo
o espaço de mais deleite, quando nos refazemos à necessidade primária e à vulnerabilidade e nos religamos com uma animalidade da qual toda a camada de suposta civilidade não nos pode apartar: o desligamento do estado alerta de consciência, quando o espaço é do que restou latente e pujante. o outro lado da vigília é o prazer mais primitivo, pois que nos restaura a integridade e nos permite o benefício da realização das projeções de desejos ou o enfrentamento, o mais perto do seguro, dos demônios mais fundos.
terça-feira, fevereiro 16, 2010
em movimento
e eis que a personagem precisa mover-se. tomar decisões, atitudes, ou pensar. que é a forma de deslocamento no espaço circunscrito da cabeça, aliás até, a que alcança, por muitas vezes, a maior das distâncias. por isso, a personagem levantou de sua posição letárgica, deitada na poltrona e decidiu, além de pensar, executar alguma ação, que por mais ínfima na forma mais óbvia e superficial de mensurar pareceria quase inócua, mas que a ela apresentava a real dimensão: tomou o telefone, tirou o gancho e discou:
- alô?
- olá, sou eu. eu não voltarei. tchau.
tu tu tu tu tu
do outro lado da linha, a surpresa de quem nunca esperara isso...
quarta-feira, fevereiro 10, 2010
último ato
só pensava em como podia feri-la, da mais contundente forma, daquela cuja marca seria indelével - palavra de cepa mais erudita pra traduzir simplesmente: algo que não se pode apagar.
todo mundo tem um ponto fraco, até a mitologia ensina o calcanhar de aquiles, não é?
havia de conseguir encontrar a precisa forma de atingi-la com toda eficácia. era preciso, era necessário, era até vital que conseguisse deixá-la inválida, mesmo que apenas internamente, mesmo que o exterior fosse recuperável. aliás, era isso mesmo que desejava: que os vestígios externos da mácula tivessem média duração e se fossem, mas deixassem seu rastro de traumatismo sem cura lá dentro, onde ninguém poderia ver, fazendo dela uma deficiente e inválida não presumida, e que nem conseguiria explicar a terceiros a sua condição.
arrancou-lhe olhos e cordas vocais: foram postas próteses do mais puro azul, ainda mais belas que as órbitas originais, e a última imagem que restou na memória dela era a da dor e do próprio sangue escorrendo pelos buracos dos antigos órgãos da visão...
terça-feira, fevereiro 09, 2010
sumos antigos: cirandinha do araçá
cheiro e gosto
de tempo de infância
quando provei o azedinho leve
como carinho na saliva
e era uma fruta ainda desconhecida
pequena, amarelada e quase acanhada
mas que no odor se impunha
e eis que deduzi pelo paladar
que tinha encontrado a filha
na árvore genealógica da família
uma amiga a partilhar
meu diminuto ser:
era uma goiabinha infante
uma bola de gude de goiaba
um araçá amarelinho
com gosto de mato
e a caminho de mar.
sobre o Estado coercitivo, a liberdade na corda bamba e as crianças ilimitadas
me pergunto tantas vezes sempre, quando vejo aquelas deploráveis cenas cotidianas de adultos (pais ou parentes de qualquer natureza, sobretudo) que atestam, em cena e verbalmente, não "poderem com certa criança"! e se daí não vem o indispensável, de onde, Jeová nos céus, virá??? e seguimos mais e mais a lógica da transmissão de esmagamento, a cada degrau, mesmo imaginário, que um indíviduo julga galgar (mesmo quando ele nem sabe o real significado disso)... e vem a lógica do capataz, tão velha conhecida nossa, quase algo que nossos vereadores deveriam patentear, em tempos nos quais a moda política de "mostrar serviço" é criar projetos de lei para patentear patrimônios imateriais (cachaça, rapadura, frevo), e ninguém lembra do descaráter nacional? cadê Macunaíma que não se associa a Policarpo Quaresma, o corrompe e lança uma franquia de burladores oficiais da lógica coercitiva do Estado, que é aliás empreitada das mais fáceis, considerando-se que, se algo de tal lógica sobrevive, é apenas nas aparências.
como a tão necessária e esperada "lei do silêncio", ou coisa que o valha, que tenta coibir o mau gosto alheio de se impor enlouquecedoramente a todos, sobretudo com a facilidade física de propagação do som (como são perversas as leis da natureza, não?) e fazem a ostentação das potências de caixas de som de casas e automóveis invadirem espaços e ouvidos alheios?
que tal também uma campanha de otorrinolaringologistas (adoro o palavrão) distribuindo aparelhos para deficientes auditivos a quem não tem nenhuma deficiência (ainda, auditiva; só cerebral e na educação do gosto musical e estético) para que se consiga, de fato, que o aumento do som no local de "captação do dejeto sonoro" (para que fique beeem claro, o ouvido de quem põe e repete mil vezes a mesma infâmia sonora a toda altura) seja tão amplificado, que o volume final resulte de fato diminuído... afinal, o disque denúncia quase nunca funciona, pelas tantas razões da hipócrita "lei da boa vizinhança" ou do excesso de tráfego e de funções do Estado coercitivo, mesmo que delas ele nunca dê conta...
Restam-nos Mafalda e Quino, para o resguardar do humor, mesmo na situação adversa...
segunda-feira, fevereiro 08, 2010
um jogo
"o romance é um jogo. eu sempre advirto que a palavra romance, na capa de um livro, significa fábula", a lucidez de apontar as máscaras e de examinar a realidade à volta, sem papas (literalmente) na língua, sem medo de hagiologias, um jornalista que soube ser escritor crítico e fabulista, lúdico e historiador de avessos: Tomás Eloy Martinez, que descanonizou a santa Evita, na santíssima trindade da iconoclastia portenha, junto a Néstor Perlongher e a Copi.
Vai-se Tomás, mas deixa-nos a brincadeira com as cobertas e descobertas da ficção.
Foi-se, também, aquele que dizia: "não comento autores, comento livros", como a atestar a necessária independência entre homem/obra, para que caiba ao discurso crítico a lucidez de separar afetos pessoais, melindres, medusas e literatura... Wilson Martins, autor (entre outros) da História da Inteligência Brasileira (7 volumes).
sábado, fevereiro 06, 2010
historinha
a situação já ia beirando o insuportável: incontorna-se uma turba em furor e desalinho, no máximo se consegue atravessá-la por perfuração e muita tenacidade. assim se sentia ela, a personagem. mas precisava se mover, mesmo com o som infame que insistia em lhe perturbar o sentido da audição. sempre se pautara por tanta convicção e certezas e uma inabalável crença na honestidade, que mal podia crer estar tão injustamente naquela situação. mas não trairia a si, por isso desejava e mesmo assim continha-se, calava. um silêncio que era a própria mão arrastando em muro chapiscado de cimento, com tanta força que o tapete de heras (disfarce de hipócrita maciez) parecia holograma apenas. e ela decidira não abrir mão de si, a única raiz pela qual prezava, fincada lá fundo, desde a mais infante memória, quando soube o que era proteção. e o que era a contrapartida desta: o estupro, a invasão, a violência dos sentidos e da ordem natural.
o pacto houvera, o pacto vingou. o pacto foi a raiz reconhecida e renovadamente escolhida.
então, era preciso seguir, nem sempre sabendo como ou para quê. mesmo após desistir, precisava seguir, pois assim fora o pactuado. e ela iria, que palavra de homem não volta atrás...
como quem cria planta, a responsabilidade indelével da terra, da água, das flores. como quem cria bicho de estimação, a responsabilidade indelével do abrigo, da água, do alimento, do afeto.
ela seguia como planta criada por si mesma, como bicho de sua própria estimação.
sexta-feira, fevereiro 05, 2010
da série: travestis
a lagarta é um dos fundamentos do travestismo na natureza
e sua face-diva travestida é a borboleta
e a obsessão rege o obsceno
que tantas vezes acompanha a beleza
o amor e a dor
e funda o primeiro olho
que transgride a norma
ao desejo tão alheia
e sua face-diva travestida é a borboleta
e a obsessão rege o obsceno
que tantas vezes acompanha a beleza
o amor e a dor
e funda o primeiro olho
que transgride a norma
ao desejo tão alheia
da série: as esperas
uma lagarta sabe sua sina de paciência
seu fado é talhar-se diariamente em saliva uma morada que é vestimenta
que é também biombo e limbo
de onde sairá borboleta
esta última, final estágio de metamorfose do mesmo ser
é a imagem única pelo alheio cobiçada
além da seda, dos fios de saliva da lagarta
a esta resta
apenas:
o asco, o nojo, a condição de borralheira,
as esperas todas para desfazer-se de si
e permanecer em outra máscara
assim sendo admirada
se se veste de asas e cores
quinta-feira, fevereiro 04, 2010
olho d'água
quarta-feira, fevereiro 03, 2010
adubo e germinação
um viço de cor dourada
mas de amarelo sol
não de suposta substância preciosa
e sim da mais tenra matéria
que aquece e faz vingar
semente em terra cuidada
com zelo de amante
assim te velo
cada todo santo dia
no recanto que elegemos
pras orações
pras refeições
pra o amor
infante e maduro
cheio de risadas
cotidianas e desenfreadas
assim
cada todo santo dia
uma nascente alegria
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